Esse é o número de exemplares que o governo federal acaba de entregar em todas as escolas públicas do país. Pela complexidade, a operação se tornou referência mundial em logística
O DIA DA ENTREGA
Pais e alunos recebem os livros em uma escola no Rio de Janeiro: atraso zero
Pais e alunos recebem os livros em uma escola no Rio de Janeiro: atraso zero
Terminou, com o início das aulas, uma megaoperação coordenada pelo Ministério da Educação (MEC) para entregar 103 milhões de livros didáticos nas 140.000 escolas públicas brasileiras. A distribuição dessa enorme quantidade de livros, que empilhados teriam a altura de 200 montes Everest, consumiu cinco meses e incluiu milhares de viagens de carreta, barco e até carroça. Para citar um périplo entre vários, chegar a um município como Ipixuna, distante 1 380 quilômetros de Manaus, exigiu, além do transporte inicial de caminhão a partir de São Paulo (que concentra a produção de livros didáticos no país), cruzar o Rio Madeira de barco durante 33 dias e seguir adiante de van por mais quatro.
Não há no Brasil nenhum programa oficial que envolva uma distribuição tão extensa nem demande logística tão complexa. A segunda maior operação do gênero é a entrega de vacinas pelo Ministério da Saúde, que perde em dimensão (na última campanha contra a rubéola, foram 84 milhões de doses) e na variedade da carga – uma única vacina, contra 2 322 títulos. O que complica mais ainda a logística dos livros é o fato de cada escola receber uma encomenda diferente. São 140 000 tipos de pacote, entregues um a um. O único programa de distribuição de livros didáticos que supera a dimensão do brasileiro é o chinês – mas há uma diferença relevante em favor do Brasil: “Os professores têm a liberdade de escolher os livros que vão adotar”, resume Nélio Bizzo, da Universidade de São Paulo.
Não foi fácil encontrar uma fórmula para fazer os volumes certos chegarem ao destino planejado sem atraso. Até há pouco, persistia uma situação absurda: só 25% dos estudantes tinham os livros no primeiro dia de aula. Alguns recebiam o material apenas em setembro. Os atrasos se deviam à falta de um controle centralizado da operação – hoje sob o comando dos Correios, mas antes pulverizada por dezenas de empresas contratadas pelo governo. Esse modelo resultava em erros danosos. Pedidos de algumas escolas não chegavam e ninguém se dava conta disso. Livros eram enviados ao endereço incorreto. Muitos também se rasgavam ou molhavam no caminho. Foi um duro aprendizado até descobrir o melhor jeito de embalar os volumes e acomodá-los nos caminhões, sem deixar brechas entre os pacotes para evitar os danos com o sacolejo da viagem. Atualmente, a distribuição é planejada e acompanhada por um sistema que simula todas as etapas da operação.
Com base nos cálculos, determinam-se o melhor trajeto para os caminhões, a quantidade ideal de caixas a ser colocada em cada um e o ritmo de produção dos livros pelas editoras. Eles são impressos aos poucos, para evitar o armazenamento, o que sairia caro. A presteza na entrega rendeu aos Correios um prêmio no World Mail Awards, espécie de Oscar internacional da logística.
PARCERIA EM PROL DOS LIVROS
Mães e professores de uma escola de Manaus: elas ajudam a preservar o material
Mães e professores de uma escola de Manaus: elas ajudam a preservar o material
“O caso desperta mais curiosidade por se passar no Brasil, onde a logística é sabidamente penosa”, diz o consultor Leonardo Lincoln, do Instituto de Logística e Supply Chain. Pesam contra o transporte de cargas no país as longas distâncias e a falta de infraestrutura. No Brasil, 65% das cargas seguem por rodovia (uma opção cara) e apenas 20% por trem (uma opção bem mais econômica).
Em países desenvolvidos, as proporções são inversas. O péssimo estado de conservação das estradas aumenta ainda mais os custos e torna qualquer operação mais lenta e difícil. Por tudo isso, os brasileiros gastam proporcionalmente mais com logística: o valor equivale a 13% do PIB. É quase o dobro do gasto dos americanos.
Há cerca de cinquenta grandes empresas especializadas em transporte e armazenamento de cargas no mundo, como as americanas UPS e FedEx, ambas com operações no Brasil. Embora tenham um alto padrão de excelência, elas não contam com um fator decisivo para garantir a eficácia da distribuição dos livros didáticos no país: a presença nos 5 564 municípios, como é o caso dos Correios. Nem se interessam por isso.
Diz Carlos Ienne, diretor de operações da FedEx na América Latina: “Para entregar esses livros, é fundamental ter uma capilaridade que, definitivamente, não está em nossos planos. O foco da FedEx são as 2 800 cidades brasileiras que concentram 90% do PIB”. Montar uma estrutura em quase o dobro dos municípios não compensaria o negócio, avalia o diretor da FedEx. É o que explica também o fato de nenhuma empresa ter aparecido nas quatro licitações que o governo tentou abrir, depois de os Correios assumirem a operação.
Além da logística, outro aspecto que merece atenção no programa brasileiro diz respeito ao sistema de escolha dos livros, que preserva o direito do professor de optar pelos títulos que julgar melhores. Algo que mais países, como Canadá e Inglaterra, também fazem. O princípio é bom. Só o professor, afinal, conhece tão bem a realidade de seus alunos. O Brasil foi o único, no entanto, a implantar uma avaliação dos livros enviados pelas editoras.
Todos são submetidos a uma análise técnica, em que se observam detalhes de impressão, e a uma apreciação do conteúdo, na qual se verificam erros conceituais e a coerência com as exigências curriculares do MEC. Cerca de 70% dos livros são aprovados e ingressam na lista apresentada aos professores. Não se trata de um sistema infalível. Mesmo com essa peneira, passam erros. Acontece, além disso, que livros de padrão mediano sejam escolhidos em detrimento de excelentes coleções. “Ainda que produza distorções, o sistema que permite ao professor definir o material de suas próprias aulas ainda é o mais democrático”, pondera o especialista Claudio de Moura Castro.
A compra de milhões de exemplares permite ao MEC negociar bons preços com as editoras. Atualmente, 36 editoras vendem livros didáticos ao governo, entre elas Ática e Scipione, do Grupo Abril, que edita VEJA. O mesmo livro vendido nas livrarias por cerca de 70 reais sai para o MEC por 5 reais. As margens de lucro das editoras giram em torno de 5%, quase a metade do que rendem as vendas para as livrarias.
O negócio com o governo compensa pela escala e ainda por uma segunda vantagem: os livros jamais são devolvidos, ao contrário do que ocorre com as livrarias, que recebem os títulos sob regime de consignação. Se eles encalham nas prateleiras, cabe à editora retirá-los da loja e armazená-los num galpão até um novo ano letivo começar. Custa dinheiro. Tudo isso ajuda a entender por que 56% do faturamento das editoras de livros didáticos, em média, vem das vendas ao governo – ainda que o preço cobrado pelos livros seja tão mais baixo. Para os autores, esse é também um bom filão. Um título de sucesso no mercado de livros didáticos vende algo como 2 milhões de exemplares num ano – muito mais do que qualquer best-seller.
Na maioria dos países, o governo tem programas de distribuição de livros didáticos em escolas públicas. É assim nos Estados Unidos e em grande parte da Europa. No Brasil, eles já acontecem desde os anos 30, mas até 1995 a entrega era limitada a poucas séries e não tinha regularidade. Durante o governo Collor, parte do programa chegou a ser suspensa. Hoje, atende todos os 35 milhões de estudantes de escolas públicas, do 1o ano do ensino fundamental ao último do nível médio. Custa ao governo 842 milhões de reais, algo como 2% do orçamento do MEC. Os especialistas concordam que se trata de uma boa aplicação do dinheiro para a educação.
O livro didático é uma ferramenta fundamental, especialmente num país pobre como o Brasil. Para os professores, que raramente têm um currículo em que se espelhar, fornece uma espécie de roteiro para as aulas. No caso dos alunos, além de material de apoio para os estudos, esses livros são, muitas vezes, os únicos da casa. Quem acompanha o programa relata que até os pais os utilizam como fonte de pesquisa – como ocorre com a dona-de-casa Leda de Araújo, 51 anos e um filho matriculado numa escola estadual de Manaus. Lá, a remessa de livros didáticos do MEC chegou há três meses. “Dou muito valor a esses livros e ensino o mesmo às crianças.”
Fonte:
Revista VEJA – Seção Logística – 103 milhões de livros didáticos por Camila Pereira, com reportagem de Mariana Borges e Renata Betti
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